Café da manhã em 1902

Meu bisavô andava pra lá e pra cá dentro de casa, roendo as unhas. Era um andar pesado, de quem sente uma dor que não compreende. E, quando se sente uma dor assim, é como se nada coubesse em si, de forma que embora andasse pra lá e pra cá, meu bisavô não se achasse fazendo isso. (Era mais como se sentisse que seus passos fossem a causa ou a consequência de algo maior do que eles mesmos).
Enquanto isso, minha bisavó, sua mulher, fritava ovos e esquentava o leite na chaleira. (Era um fritar ovos de quem apenas frita ovos. E um esquentar leite de quem apenas esquenta leite).
Meu bisavô, enquanto andava como quem não anda e olhava para minha bisavó fritando ovos como quem frita ovos, pensava que talvez não amasse minha bisavó, dentre outras coisas nas quais pensava. E minha bisavó, embora não amasse meu bisavô, não pensava em nada, apenas fritava ovos, dentre outras coisas as quais fazia.
Além de pensar na minha bisavó, no amor (e na falta dele) e de andar pra lá e pra cá como quem não faz isso, meu bisavô também pensava no meu avô, seu filho, um filho que o preocupava, um filho complicado, epilético.
Meu avô epilético, também um futuro comunista, acordava faminto e descia para comer o ovo frito que a minha bisavó fazia, na companhia do meu bisavô, infeliz e preocupado, que andava pra lá e pra cá, pensando em amor (e na falta dele), no meu avô/ seu filho epilético, dentre outras coisas.
Meu avô, faminto, futuro comunista, filho de mãe que não amava pai e fritava ovos, dentre outras coisas, sentou-se à mesa, e meu bisavô, vendo meu avô sentado, sentou-se ao seu lado (um sentar pesado, de quem sente que o seu sentar é a causa ou a consequência de algo bem maior).
Vendo meu bisavô sentado como quem não parece sentado, pensando em amor (e na falta dele), mais preocupado com a epilepsia do filho do que com a própria fome, meu avô sentiu um misto de amor e pena e, por um instante, esqueceu a sua fome também.
Nesse momento, minha bisavó chegou à mesa, segurando com uma mão a frigideira e, com a outra, a leiteira. Ela olhou para o meu avô/seu filho e notou nos seus olhos a sua momentânea falta de fome, o que a deixou com uma dor que compreendeu. (A falta de fome momentânea do filho epilético, sempre faminto pela manhã, era triste).
E então minha bisavó, que fritava ovos como quem fritava ovos, passou a segurar a leiteira como quem sente que o que faz é a causa ou a consequência de algo bem maior. E seu pulso (esse que segurava a leiteira) fraquejou, fazendo com que parte do leite quente vertesse sobre a região da mesa onde meu bisavô repousava seu braço esquerdo.
O leite quente, no contato com a pele fina do meu bisavô, queimou-o, provocando nele uma dor exata (uma dor de quem tem o braço queimado por um líquido muito quente).
E nenhum dos três jamais esqueceu aquela manhã.

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