Palavra (en)cantada

Filme: Palavra (en)cantada

Direção: Helena Soldberg

Ano: 2008

Mais uma vez, a cineasta Helena Soldberg mostra seu interesse pela cultura popular brasileira. Nesse novo documentário, Palavra (en)cantada, trata de um tema que vem ganhando atenção, principalmente, de estudiosos dos campos da literatura, da música e da antropologia: nada menos do que as relações entre a poesia e a música.

Tema rico, complexo e com um horizonte tão largo que é capaz de colocar dentro dele quase toda a história da humanidade, senão toda ela. Porque falar das ligações entre música e poesia talvez tenha mais a ver com a linguagem primitiva dos primeiros homens do que com a racionalização e burocratização que nela o Ocidente Moderno instituiu. E que, por sua vez, levou à separação, através de um binário mecanismo cartesiano, entre as linguagens escrita (que se passou a associar a dimensão racional do homem) e musical (associada a uma dimensão mais emocional).

No entanto, alguns estudiosos empenharam-se em demonstrar que `nossa dicotomia contemporânea entre texto e música não pertence a uma ordem natural permanente`. E que durante a Idade Média, por exemplo, a figura dos trovadores, entoando suas cantigas acompanhados por instrumentos musicais, encarnava esse casamento entre a palavra e a música. O mesmo acontecia na sociedade grega antiga, nos rituais religiosos de tribos africanas, nas canções heróicas iugoslavas e, da mesma forma, em muitas outras expressões culturais. (ver Palavra Cantada: ensaios sobre poesia, música e voz)

Assim, Palavra (en)cantada, parte da hipótese, tornada explícita por uma das falas do músico e pesquisador José Miguel Wisnik, de que a música popular brasileira seria expressão autêntica de mais um desses encontros históricos entre a música e a poesia.

Hipótese perfeitamente costurada e que se inicia com um depoimento de Adriana Calcanhotto cantando em franco-provençal versos de Artaud Daniel, poeta provençal do século XII. Seguindo essa tessitura, há a sugestão de Lenine de que os compositores brasileiros são descendentes diretos do trovador e os depoimentos de Wisnik, discorrendo sobre a forte tradição oral da cultura brasileira. Segundo o pensador, a cultura letrada nunca teria penetrado ampla e efetivamente no Brasil e teríamos passado diretamente da oralidade para a cultura audiovisual do rádio e da televisão, sem o interlúdio determinante do livro e da escrita, tal como acontecera na Europa.

Dessa hipótese é que surgem, alinhavados, outros questionamentos. Refiro-me, em especial, ao antigo debate relacionado à existência ou não de fronteiras entre a cultura popular e a cultura erudita no Brasil. Aqui aparece, mais uma vez, o interesse da cineasta pelo Tropicalismo (o que já revelara explicitamente em seu documentário anterior sobre Carmen Miranda, Bananas is my buisness), como manifestação cultural em que essa aproximação entre elite e massa, erudito e popular é perpetrada. São valiosas as imagens de arquivo mostrando figuras como Caetano Veloso (numa hilária entrevista no Festival da Record, em 1967), Gilberto Gil, Rita Lee, entre outros, que protagonizaram esse momento histórico.

O ecletismo que orienta a escolha de seus personagens deixa muito claro essa postura tropicalista adotada pela cineasta. Afinal de contas, entre os entrevistados (Adriana Calcanhotto, Antônio Cícero, Arnaldo Antunes, BNegão, Chico Buarque, Ferréz, Jorge Mautner, José Celso Martinez Correa, José Miguel Wisnik, Lirinha, Lenine, Luiz Tatit, Maria Bethânia, Martinho da Vila, Paulo César Pinheiro, Tom Zé e Zélia Duncan,) estão sambistas, poetas, intérpretes, rappers, teatrólogos, baianos, gaúchos, cariocas, moradores da zona sul, leste e oeste. Mais variado, parece difícil.

Somos levados à sugestão de que, desse encontro entre a música e a poesia, as fronteiras- sociais, culturais- no que tem de limitadoras, tornam-se, de alguma maneira, menos demarcadas. E é isso que realmente importa para o filme. Não a discussão levada à frente por muitos sobre o quanto uma letra de música pode ou deve ser considerada poesia. Ganha peso o depoimento de Adriana Calcanhotto de que essa é para ela uma discussão infértil, a vida é muito curta para comportar esse tipo de preocupação.

Até porque, justamente, o que está em jogo aqui não é demarcar fronteiras nem colocar cada coisa no seu devido lugar mas, ao contrário, mostrar que misturadas, remidiadas, transmidiadas, elas sao igualmente belas, ou diferentemente belas, que seja. O que vale aqui é Fernando Pessoa chegando para Adriana pela voz de Bethania, é Waly Salomão chegando para gente depois de passar pela sensibilidade de Adriana, é João Cabral chegando para milhares de pessoas pela música de Chico Buarque. É a antropofagia de Zé Celso Martinez, o Tropicalismo de Caetano, a palavra, seja ela escrita por Cícero, recitada por Lirinha ou cantada por Bethânia.

Um argumento forte que o filme usa é o relato, feito por Chico Buarque, da história que há por trás do musical feito por ele a partir do famoso texto de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Conhecido como um poeta racionalista, avesso às rimas e a musicalidade dos poemas, contam os músicos, as músicas ( como Outro Retrato, de Caetano Veloso) e o depoimento de Chico, que João Cabral não gostava nem um pouco da idéia de que musicassem seus poemas.

No entanto, sabemos que assim foi feito, que Morte e Vida foi musicado por Chico para a montagem de uma peça e, em grande parte por isso, tornou-se conhecido por tanta gente. Então a pergunta que fica é: se até Cabral foi musicado o que nessa vida não é musicável? Se no auge da pretensão da racionalidade se pode extrair uma música, essas duas instâncias não são tão independentes assim como um dia o Ocidente ou Cabral desejou.

E é esse debate sobre a oposição entre erudito e popular, palavra e música, que ganha corpo a partir da hipótese que o filme lança. Oposição que perde parte de seu sentido no reconhecimento de que somos uma cultura preponderantemente oral, de que fazemos parte de uma sociedade (a brasileira) em que a divisão entre a razão e a emoção não foi de todo efetuada. De que num mundo de bom dias burocráticos, a nossa canção é uma forma de viver mais poética e musicalmente o dia-dia.

7 comments:

Anonymous,  March 16, 2009 at 11:23 PM  

Oi Flávia, gostei muito da sua crônica. Me fez pensar...eu não consigo deixar de achar no mínimo estranho que em João Cabral a musicalidade tenha sido quase combatida pela sua aridez construtivista do poeta como engenheiro. Somos um país tão musical quanto os versos do Bandeira e da Cecília Meireles, e como o Wisnik diz, nesse veneno remédio que é o Brasil, só mesmo porque somos um país de iletrados é que fomos capazes de produzir uma canção popular tão sofisticada, ele tem razão. O Haroldo de Campos defendia que a leitura de um poema concreto é parecido com a leitura de uma música, porque é circular e tem uma narrativa mais visual solta no espaço do que um poema que tenha um discurso. O Haroldo de Campos só não estava se referindo ao discurso da canção, que tenta articular letra e música em isomorfismo, uma comentando a outra, aí sim tem um discurso bem claro que é bem parecido com o poema clássico. Portanto, não é privilégio do poema concreto ser musical, toda poema o é em certa medida, até os cabralinos do João. Mais certo estava o também concreto Décio Pignatari ao discorrer que a poesia está mais ligada a música em seu discurso subjetivo, assim como o discurso da prosa com a filosofia em sua construção muito mais lógica e objetiva. Até os poemas pretensamente objetivos e lógicos racionais iluministas são musicais, qualquer palavra tem sua música, mesmo que seja uma música de silêncio, isso o Pignatari já dizia nos anos 70, de certa forma até corajosa. O Décio estava certo. Quanto ao Jõao Cabral, esse surrealista recalcado, trata-se para de um gênio como o Fellini. Não é a toa que os dois odiassem música. O João Cabral quando ficou cego no fim da vida, só permitia que sua filha lhe lesse seus poemas, pois só ela sabia entoar de maneira parecida com ele. Já o Fellini declarava que sentia uma vertigem tão absurda quando ouvia uma música, que tinha medo de enlouqecer. Por isso deixava tudo a cargo do Nino Rota, e fugia da música o máximo quanto pudesse por toda sua vida. Seria esse sentimento vertiginoso que sentia o João Cabral e tinha medo de admitir? Existem filmes mais oníricos e musicais do que os do Fellini? Termino aqui essa resposta que seu texto me sucitou..pq gostei...rs, com o meu poema preferido do João Cabral, super lírico musical que ele fez para o Drummond.
Bjs, Augusto.

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

Anonymous,  March 24, 2009 at 6:54 AM  

I´m impressed! Primeiro, Flavia Tortma sempre escrevendo bem e colocando a sua opinião e sua bagagem cultural de forma tão acertada. O conhecimento é realmente a nossa melhor ferramenta! Agora vem o Augusto - arbusto - e discorre sobre poesia e música com a segurança genuína dos especialistas! Estou boba! Vocês formam uma dupla e tanto! Vamos continuar a escrever, amigos, a escutar música e papear porque é isso que nos completa realmente.
Flavs, amiga, você aumentou ainda mais a minha vontade de ver Palavra (en)cantada. Muito bom! Parabéns.
Beijo grande,
Michelle K.

Anonymous,  March 24, 2009 at 7:00 AM  

Eba! Consegui comentar, Flavs! Tava dando erro direto no computador aqui do trabalho.
Vou copiar e colar aquele post que tinha escrito p/ vc e não consegui publicar, lembra? Não deixe de visitar o meu BLOG também. Sempre que puder vou atualizá-lo. https://www.poetasaindaexistem.blogspot.com
É isso, amiga. Que esse seja apenas o início de uma parceria promissora! Não esqueça do nosso Sarau na sexta que vem (03/04). Fale com o seu professor de piano. Nessa sexta vou p/ Recife.
Bjão

Anonymous,  March 25, 2009 at 8:55 AM  

Ah! Só mais uma coisa. Não tem como mudar essa cor de fundo dos recados amiga? Tô achando muito escuro esse tom de roxo. Mal dá p/ ler... Não sei o q vc acha. Pensa bem! Bjinhos.

Michelle Kaplan April 8, 2009 at 8:42 AM  

ATUALIZAAAAAA!
ATUALIZAAA!
ATUALIZA!

Unknown April 23, 2009 at 10:40 PM  

EU APOIO, FLÁVIA TIRA ESSE ROXO DAQUI!!!!! MAL DÁ P LER OS COMENTÁRIOS......TROPICÁLIA COMBINA MAIS COM 1 AMARELO ESCURO...ALGUMA COISA MAIS CARMEM MIRANDA..RS. BJS! AUGUSTO.

Anonymous,  April 28, 2009 at 7:13 PM  

Flavinha! Tudo bem, querida amiga?

Flavinha, esses dias, minha mãe estava vendo televisão e me chamou para ver uma entrevista interessante. Advinha quem era a entrevistada? Helena Soldberg! Lembrei de você.

Bom, esse post é grande e tenho muito a comentar, mas é melhor ao vivo :)

O que eu adianto é que, embora eu concorde com a tese geral da Helena Soldberg, acho que é impossível eu não amar a música instrumental que, mesmo sem letras, é capaz de dizer tanto ao meu coração! Para mim, a música instrumental é capaz de me tocar tanto quanto outras músicas com lindas letras.

Mas, realmente, a música popular brasileira tem como uma de suas principais características a união entre música e palavra. Gostei bastante das possíveis explicações para isso.

Estou exausto após um longo trabalho :( Depois eu te ligo para conversarmos! Saudades! Beijos!

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